Homilia de D. Manuel Clemente nas ordenações presbiterais do dia 29 de Junho de 2014
Irmãos caríssimos
A feliz circunstância das ordenações deste Domingo, na Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo, traz-nos com a Palavra de Deus algumas afirmações fundamentais para a compreensão do que somos como Igreja e do que havemos de ser e de fazer, para a evangelização do mundo.
Basicamente diremos que a Igreja não é iniciativa nossa, nem fruto das nossas projeções e conjeturas. Que a evangelização e os seus sucessos são unicamente garantidos por Deus e só com Deus irão por diante, em campo livre. E que tudo se orienta para realidades definitivas, especialmente assinaladas por quem já definitivamente vive. No caminho sinodal que começamos a trilhar na Igreja de Lisboa, movidos pelo “sonho missionário de chegar a todos”, com que o Papa Francisco nos empolgou também, creio que estas três afirmações são da máxima oportunidade.
Na verdade, a Igreja não é iniciativa nossa, nem fruto das nossas projeções e conjeturas. Ninguém a fundaria como Cristo a fundou e sustenta, e ninguém abarca a novidade perene do seu devir no mundo. Temos vinte séculos de demonstrações disto mesmo, em sucessivos momentos reformadores que nunca partiram de congeminações grandiosas, mas da germinação imparável de começos desapercebidos. Desapercebidos do mundo, mas carismaticamente garantidos pelo Espírito divino, sempre ativo quando encontra aquela correspondência que, aliás, suscita.
O diálogo que ouvimos é claríssimo a tal respeito: «Jesus perguntou: ‘E vós, quem dizeis que Eu sou?’ Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse: ‘Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo’. Jesus respondeu-lhe: ‘Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a minha Igreja…’».
Reparemos que tudo se concentra no reconhecimento de Jesus como Messias e Filho de Deus. Que o reconhecimento não é simples conclusão humana, mas essencialmente revelação divina. E que nisto mesmo assenta a Igreja de Cristo.
Claro que deste facto tiraremos consequências, que o tornarão razoável e verosímil, bem vistas as coisas e atendendo ao que provoca. Mas nada o determinava da parte humana e nada o faria prever, só a partir das expectativas terrenas. Antecede-nos ao começar, converte-nos ao acontecer e ultrapassa-nos ao findar, imensamente tudo.
Quando esquecemos esta verdade eclesial de raiz, divagamos de ilusão em frustração. Desgostamo-nos com o que nunca nos foi prometido, perdemos o rumo e secamos a própria fonte da esperança. Mas só de nós nos poderemos queixar então…
Nasce e renasce a Igreja por revelação divina, aceitação dos crentes e edificação de Cristo. Contra isto, mas necessariamente isto, não há “portas do inferno” que prevaleçam. Sejam elas as da escassez de recursos para manter o que temos, ou de ministros ordenados para corresponder à procura, ou até de entusiasmo para continuar em frente e criatividade para conceber algo novo. Sejamos claros e sucintos: recursos, ministros, entusiasmo e criatividade, tratando-se da Igreja de Cristo, é Deus e só Deus que insubstituivelmente os garante. Peçamo-los, agradeçamo-los, confiemos sempre. E, se ainda assim faltarem como os queríamos, concluamos que doutro modo há-de ser, segundo Deus.
A segunda conclusão a tirar do que ouvimos é de que a evangelização e os seus sucessos são unicamente garantidos por Deus e só com Deus irão por diante, em campo livre. Ouvimos nos Atos dos Apóstolos, quando um anjo libertou Pedro da prisão em que estava: «Depois de atravessarem o primeiro e o segundo posto da guarda, (Pedro e o anjo) chegaram à porta de ferro, que dá para a cidade, e a porta abriu-se por si mesma diante deles».
Libertos estamos, no Espírito que nos libertou e nos “anjos” que nos acompanham, em tanto mensageiro divino que nos chegou e sempre chega: Palavra de Deus, vida de Igreja, estímulo de verdadeiros amigos… Mas há ainda barreiras e postos a ultrapassar, até que a porta – e porta de ferro – se escancare para a cidade a evangelizar.
É a oração persistente da Igreja que suscita tais “anjos”, que nos libertam para o anúncio urgente. Também ouvíamos: «Enquanto Pedro era guardado na prisão, a Igreja orava instantemente por ele». – Quantas barreiras, de facto! Porque não nos deixam, porque não ousamos, porque não sabemos, porque não podemos, porque já estamos velhos, porque ainda somos novos, porque já foi tempo, porque ainda não é… Mas então rezemos, e por fim deixemos que Deus faça em nós o que bem entenda, para fazer por nós o que deve ser.
Não é por acaso que a nova evangelização se formula, segundo João Paulo II, na conhecida sequência: “nova no ardor, nova nos métodos e nova nas expressões”. É o ardor da fé no calor orante que origina sempre o modo e o tom da evangelização oportuna. Nada há na vida de Cristo que não brote da sua intimidade com o Pai, filial e constante. Nada haverá de autenticamente cristão que não brote de igual fonte, como inesgotável manancial. No caminho sinodal da Igreja de Lisboa, a oração há-de estar sempre e em toda a parte no princípio, no meio e no fim de tudo o que se faça, como inspiração e primeiríssima garantia.
A última consideração a fazer é de que a vida se orienta para realidades definitivas, especialmente assinaladas por quem já definitivamente vive. Ouvíamos Paulo, escrevendo a Timóteo: «Já me está preparada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me há de dar naquele dia; e não só a mim, mas a todos aqueles que tiverem esperado com amor a sua vinda» (2 Tm, 4).
Desde que fora alcançado pelo Ressuscitado, o Apóstolo das Gentes não quisera outra coisa senão alcançá-Lo também e levar a todos no mesmo encalço. A evangelização não é sobretudo a salvaguarda do que está e como está, mas abertura à realidade definitiva, que em Cristo ressuscitado nos é oferecida. Se não compreendermos isto, nunca passaremos da religiosidade natural, para não dizer pagã, à religião de Cristo que é ansiar por Ele. A revelação bíblica conclui-se com o brado essencial: «Vem, Senhor Jesus!». Brado que se repete após a consagração eucarística: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!». E depois do Pai Nosso, lembra ainda o sacerdote: «… enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador».
Caríssimos irmãos: A verdade da Igreja e da sua missão no mundo articula-se inevitavelmente aqui, quando a teologia se faz escatologia, acolhimento e anúncio do que Deus nos dá definitivamente em Cristo. E é importante verificar, caríssimos ordinandos, que não é por acaso que a frase litúrgica citada – «enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador» – será dita por vós em cada Missa que celebrardes, e precisamente como sacerdotes celibatários.
Detenhamo-nos um pouco neste último ponto, já que alguma opinião o desvaloriza ou dispensa. Deixai-me dizer até que, sendo verdade que, mesmo na Igreja Católica, há casos de ordenação sacerdotal de homens casados, o celibato não se reduz, como por vezes se ouve, a uma “mera questão disciplinar”. Muito pelo contrário, sendo realmente uma graça, ele assinala para a Igreja toda, na vida consagrada ou ligado ao ministério sacerdotal, aquela dimensão final em que Jesus Cristo, também ele celibatário, nos introduz já e culminará por fim.
O celibato e a virgindade consagrada alargam o horizonte e o coração, quer para a paternidade pastoral dos sacerdotes, quer para a universal maternidade da Igreja. Assim o disse, com muita clareza e aviso, o Papa Francisco, a 6 de julho do ano passado, a um grupo de seminaristas, noviços e noviças, além doutros jovens em caminho vocacional: «Vós, seminaristas e freiras, consagrais o vosso amor a Jesus, um amor grande; o coração é para Jesus, e isto leva-nos a fazer o voto de castidade, o voto de celibato. Mas o voto de castidade e o voto de celibato não acaba no momento em que se emite, continua… Um caminho que amadurece, amadurece, amadurece até à paternidade pastoral, até à maternidade pastoral, e quando um sacerdote não é pai da sua comunidade, quando uma religiosa não é mãe de todos aqueles com os quais trabalha, torna-se triste. Eis o problema. Por isto vos digo: a raiz da tristeza na vida pastoral consiste precisamente na falta de paternidade e maternidade que vem de viver mal esta consagração que, ao contrário, nos deve conduzir à fecundidade. Não se pode imaginar um sacerdote ou uma religiosa que não sejam fecundos: isto não é católico! Não é católico! Esta é a beleza da consagração: a alegria, a alegria…» (L’Osservatore Romano, ed. port., 14 de julho de 2013, p. 5).
Todas as realidades criaturais são boas e necessárias para crescermos na terra. Mas para crescermos da terra ao céu. A própria vida familiar é um valor primeiríssimo, que Jesus restaurou segundo o “princípio”, mas como pedagogia do fim: daquele fim em que já nem eles se casam nem elas são dadas em casamento, pois todos seremos igualmente irmãos na única família de Deus (cf. Mc 12, 25). Esquecer isto é esquecer quase tudo e tomar como fim o que é princípio e meio.
Por isso, Jesus não constituiu família humana, para abrir no mundo a família dos filhos de Deus. E assim mesmo o seguiu Paulo, que deu ao apostolado a mais expressiva das realizações.
Consequentemente, foi-se afirmando a vida celibatária e virginal entre muitos cristãos e cristãs, monges e monjas, clérigos também e em número crescente, antes até das normas canónicas o preverem.
Esquecer este facto não é apenas ignorar a história. É atenuar o que não pode ser atenuado, como desafio escatológico, definitivo e completo da vocação cristã. Isso mesmo que o sensualismo dominante da subcultura contemporânea não aceita, mas que o cristianismo autêntico mantém e oferece, como dizia o Apóstolo das Gentes, «a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, há-de dar a todos aqueles que tiverem esperado com amor a sua vinda»: um amor bastante, um amor final, para ser infindo.
Caríssimos Francisco e Manuel: Tudo isto passará agora também por vós, em benefício de muitos. – Também convosco caminharemos, para que o mundo finalmente respire, na imensa liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8, 19)!
Uma última palavra, que podia ser a primeira, é para agradecer muito cordialmente às vossas famílias o dom da vida que recebestes e agora sacerdotalmente ofereceis. E agradecer igualmente ao Caminho Neocatecumenal o estímulo cristão e missionário que vos trouxe aqui e vos integra agora, ainda mais, no percurso sinodal da Igreja de Lisboa. A memória agradecida vai também para o já saudoso Cardeal Patriarca D. José Policarpo, que em boa hora fundou o nosso Seminário Redemptoris Mater, de que vós sois o renovado fruto.
+ Manuel Clemente
Santa Maria de Belém, 29 de junho de 2014