Amados irmãos e irmãs, convoca-nos hoje a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. E nela participamos, muito especialmente, na ordenação episcopal de D. João Marcos, estimado irmão e amigo, que o Papa Francisco nomeou Bispo Coadjutor de Beja. Nisto seguirá um caminho já feito por anteriores bispos auxiliares de Lisboa, que daqui seguiram para a mesma diocese irmã: D. Manuel Santos Rocha, D. Manuel Falcão e D. António Vitalino, que é o seu atual pastor. Deus o acompanhará onde o envia, em Cristo que sempre nos espera na variada Galileia deste mundo.Em tudo isto e além do mais, nos chamará aquela voz há pouco ouvida, ao Reino que nos dá para o ganharmos: «Vinde, benditos de meu Pai; recebei como herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo!». Importa tanto ouvi-la, a essa voz, e cumpre –nos entendê-la no clamor do mundo, na necessidade dos pobres, na expetativa mais profunda dos outros!
Fome para alimentar, sede para dessedentar, errância para recolher, nudez para revestir, doença ou prisão para visitar… São estes os clamores do mundo, outros tantos caminhos do Reino. E não há outros, pois foram estes os que o próprio Rei trilhou e trilha para ser encontrado na humanidade sofrida de todos e cada um. Só aí está, só aí o encontraremos, só aí esplenderá, como esplende a cruz gloriosa, que é o autêntico trono do Rei.
– Pois não é isso mesmo que Ele agora pede sempre: «Tendes alguma coisa de comer?» (Lc 24, 41). Pois não o ouvimos como a Samaritana: «Dá-me de beber!» (Jo 4, 7). Pois não o havemos de «acolher em (nossa) casa», como acolhido era na casa de Betânia (cf. Lc 10, 38)? Pois não o havemos de «envolver em panos», como sua Mãe o revestiu, recém-nascido (cf Lc 2, 7)? Pois havemos de o abandonar quando for preso, como infelizmente aconteceu daquela vez (cf Mc14, 50)? E não havemos de estar, isso sim, com sua Mãe, as outras mulheres e o discípulo junto da cruz de todas as dores, que Ele compartilhou e compartilha (cf Jo 19, 25 ss)?!
Dando a estas reflexões o conteúdo mais prático que podem e devem ter, retomo palavras recentes do nosso querido Papa Francisco, quando resume o enunciado em três indesmentíveis urgências, outras tantas portas do Reino: terra, casa e trabalho para todos.
Falando no encontro mundial dos movimentos populares, a 28 de outubro último, assim disse, entre muito mais: «Terra, casa e trabalho, aquilo pelo que lutais, são direitos sagrados. […] Terra. No início da criação, Deus criou o homem para ser guardião da sua obra […]. Por favor, continuai a lutar […] para que todos possam beneficiar dos frutos da terra. […]Casa. Já o disse e repito-o: uma casa para cada família. Nunca se deve esquecer que Jesus nasceu num estábulo porque não havia lugar na estalagem […]. Hoje Há tantas famílias sem casa, porque nunca a tiveram, ou porque a perderam por diversos motivos. Família e casa caminham juntas! […] Trabalho. Não existe pior pobreza material – faço questão de o frisar – do que a que não permite que se ganhe o pão e priva da dignidade do trabalho» (L’Osservatore Romano, ed. port., 6 de novembro de 2014, p. 8-9).
Terra a todos destinada, casa que abrigue cada família, trabalho igualmente garantido: Eis aqui, o Reino a construir. Reconhecendo na prática o que confessamos na fé, pois se Cristo em todos nos espera, a dignidade de cada um é já divina. – Como se poderá, por mau exemplo, “dispensar” alguém do seu trabalho por razões de alegada economia, sem considerar a maior razão de ser do próprio trabalho, como meio indispensável de dignificar quem quer que seja? E, ainda mais, sem sequer procurar com o “dispensado” outro meio de viabilizar a própria vida e a dos seus…
É realmente belo e esplendoroso o Reino que hoje celebramos. Mas tem como condição indispensável o acolhimento prático de Cristo presente em cada ser humano. É a nossa conduta neste ponto que garante ou não em cada dia se pertencemos ou não ao Reino eterno.
Mas a nós sacerdotes, sacramentos de Cristo Pastor; e precisamente a ti, caríssimo D. João Marcos, prestes a receber o báculo pastoral, foi dito ainda mais na profecia. Ouvimos há pouco, no trecho de Ezequiel: «Eu próprio irei em busca das minhas ovelhas e hei de encontrá-las […]. Eu as levarei a repousar, diz o Senhor Deus».
Em Lisboa ou em Beja, ou seja aonde for, não encontramos melhor definição do trabalho a fazer: Procurar, encontrar e levar todos ao prometido repouso. Foi essa a vida de Cristo, é esta a missão dos cristãos, é este, muito especialmente, o sagrado ministério dos pastores do Povo de Deus.
– E temos de procurar a tantos, mesmo sem esperar que nos procurem a nós! A Igreja apostólica é um envio permanente, e “em saída”, como agora a quer o Papa Francisco. As planícies alentejanas alongam-se muito, mas a procura também se faz por perto, de quem está aí mesmo ao lado e ainda não foi devidamente ouvido ou sequer notado.
– E temos de encontrar realmente, com o que tal significa de coincidência com o outro, como é, como está, como espera ou quase desespera. Encontrá-lo e deixar-se encontrar, com vontade de ir ou disposição de acolher, para que os rostos se definam, os sentimentos se expressem e os caminhos se reabram.
– E temos de repousar por fim, em existências dominicais autênticas, que em cada “dia do Senhor” encontrem no louvor divino e na convivência comunitária a harmonia e a paz que deixam respirar o mundo.
Mas o mais importante, naquele trecho de Ezequiel, é serem estes, e sobretudo, os sentimentos do próprio Deus. E, neste ponto, tocamos o âmago da espiritualidade pastoral, pois que participa por graça e encargo da prontidão divina em buscar e encontrar a cada um e em levar-nos a todos ao repouso da perfeita comunhão.
Por isso todo o rito acontecerá em oração. Para que no novo bispo aconteça e se assinale a presença de Cristo, o rei-pastor. Para que Deus seja, realmente, tudo em todos!
Santa Maria de Belém, 23 de novembro de 2014
+ Manuel Clemente