O coração e a vida dos discípulos de Cristo

Começamos as catequeses nesta Hora de Vésperas do primeiro Domingo da Quaresma que já vivemos. Fazemo-lo este ano com a direta inspiração dos primeiros números da Exortação apostólica “A Alegria do Evangelho”, do Papa Francisco, que é o fio condutor do nosso caminho sinodal de Lisboa.A exortação abre com o seguinte trecho, quase resumindo o muito que dirá depois: «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos, a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos» (Evangelii Gaudium, 1).Adianta-nos o Papa Francisco alguns pontos fundamentais: 1º) Que o encontro com Jesus é causa de alegria plena e evangélica; 2º) Que ela provém da libertação do pecado, da tristeza, do vazio e do isolamento; 3º) Que tal alegria marcará a nova etapa evangelizadora, para que todos somos convocados; 4º) E que assim mesmo nos abre o percurso eclesial dos próximos anos.

Detenhamo-nos um pouco aqui. Começando pelo encontro com Jesus, causa de alegria inteira e consistente, de coração e vida. Contrapõe-se isto ao que podemos chamar “vida desencontrada”, como infelizmente pode acontecer – e tantas vezes acontece mesmo.
A noção de “encontro” tem vindo a ganhar relevo na linguagem eclesial, significando a feliz coincidência do nosso desejo mais profundo com uma resposta finalmente capaz de o satisfazer. Sobrevivemos, de facto, a dois despistes culturais da esperança, entre uma razão esvaziada de experiência existencial e a redução da realidade ao meramente apetecível. Gerações sucessivas procuraram em grandes construções mentais criar a melhor sociedade no melhor dos mundos. Muito se conseguiu, quantitativamente falando, e sobretudo nalguns espaços do globo. Superaram-se pela razão teórica e prática muitos obscurantismos e preconceitos. Mas o modo de encarar a realidade pelo abstrato e pelo geral deixou muitas vezes de fora tudo o que essa mesma realidade tem de particular e irredutível, a começar por aquilo que, do romantismo ao pós-modernismo, se expressou como sentimento ou apetência.
Tudo isto tem as suas razões, mesmo que díspares; como igualmente os seus limites, que por vezes podem ser trágicos. Grandes generalizações, ideologicamente ativadas, infligiram-nos totalitarismos vários. Fortes individualizações do sentimento ou do apetite, deixam-nos sós e vulneráveis a vontades mais fortes ou a seduções manipuladoras. Por qualquer destas vias chegamos ao desencontro.
O encontro perfeito sucederá apenas quando nos abrirmos sem preconceito à realidade que surge, raciocinando então e a partir dela, sobretudo quando nos obriga a alargar a expectativa e a aprofundar o desejo. Não para deixarmos de querer, mas para querermos melhor, para querermos realmente. Aliás, como somos pessoas, ou seja, sujeitos de interrogação e resposta, tal realidade tem de corresponder-nos pessoalmente também – em cada um dos outros e mesmo num Outro absoluto, detetável em tudo e em cada um, como companhia interpelante.
Assim aconteceu com os primeiros discípulos de Jesus de Nazaré, que foram descobrindo até onde pode chegar a realidade humana quando absolutamente – divinamente – vivida e convivida, sem negar nenhum dos seus aspetos, do nascer ao morrer, ou do rir ao chorar; e fazendo da própria morte ainda mais vida, pois, se lha infligiram, muito mais Ele a deu, para a recuperar em Deus e nos outros.
Como os primeiros, assim os atuais discípulos de Cristo, no dia-a-dia mais concreto e comezinho que for, vivido com Ele e a partir do Evangelho da vida que ofereceu. A realidade inteira é salva pela sua presença e companhia. A alegria completa, como Ele prometeu. Uma humanidade tão completa, persistente e sedutora, como em Jesus Cristo acontece. Completa, por não lhe faltar nem gozo nem dor, nem crescimento nem prova, nem vida nem morte; persistente, porque, achada uma vez, acompanha-nos agora e cria-nos futuro, como só uma grande companhia nos proporciona; sedutora, mesmo para alguns, que “sedutor” precisamente lhe chamavam a contragosto.Bem escreveu então o Papa Francisco: «A alegria do Evangelho enche o coração e a vida daqueles que se encontram com Jesus». Alegria integral para uma vida inteiramente vivida, pois nada fica de fora da sua companhia, nascida, crescida, sofrida e ressuscitada, n’Ele e em nós. É por isso mesmo que esta Quaresma já está cheia de Páscoa, em desejo convertido, para ser finalmente cumulado. Como numa corrida, já plena do fim, como há pouco ouvimos a São Paulo: «Correi de modo que alcanceis o prémio. Todo o atleta impõe a si mesmo rigorosas privações, para obter uma coroa corruptível; nós, porém, para recebermos uma coroa incorruptível».
E o Papa continuava: «Quantos se deixam salvar por Ele [Jesus] são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento». E nem precisamos de perguntar como assim, pois já sabemos e experimentamos a reposta: Porque estamos acompanhados por alguém que venceu todo o tipo de auto-isolamento, para viver constantemente com o Pai e com os outros. Mesmo quando fez seu o abandono da cruz, mesmo quando todos o deixaram só, no momento em que seriam mais precisos a seu lado.
O que nos reforça a urgência, especialmente agora e aqui onde estamos. Na verdade, se experimentamos a companhia de Cristo, é porque ela nos foi proporcionada por aqueles que mediaram a sua presença ressuscitada nas nossas vidas, com palavras e atitudes de encorajamento ao bem e de solidariedade concreta. Assim tem de continuar agora e através de nós, junto de quem esteja preso de qualquer espécie de mal, de corpo ou espírito. Mal de que não quer ou não sabe libertar-se, ficando ainda mais triste, vazio e só.
Há pecados que fazemos e há pecados que sofremos ou infligimos aos outros, por pensamentos, palavras, atos e omissões. Haja então abertura e conversão a Cristo, para com Ele nos libertarmos e podermos libertar os outros. – Cortámos com Deus? – Religuemo-nos agora, aprendendo com Jesus a viver como autênticos filhos de Deus! Cada página do Evangelho nos ensinará a fazê-lo, do modo mais direto e prático. – Sentimo-nos tristes, vazios e sós? Oiçamos o mesmo Jesus, que não se cansa de insistir: «Quem tiver sede, venha a mim e beba»! Abeiremo-nos de Jesus como duma fonte – de Jesus Palavra, de Jesus Sacramento e de Jesus irmão, pois na sede do mundo nos dessedenta Ele, multiplicando em graça o que aos outros fizermos – sobretudo a quem esteja triste, vazio e só.
Libertamo-nos libertando os outros na liberdade de Cristo, que desfaz por dentro todas as amarras interiores e tão resistentes ainda, do egoísmo que nos mata a prazo. Com os vários nomes que pode ter, na alusão evangélica das tentações que Jesus venceu e ensina a vencer. Sejam elas o desvio materialista do desejo, que pouco ou nada deixará para os outros; o desvio do ser para a aparência, que mascara o quase nada que somos com o muito que gostamos de mostrar; ou o desvio opressivo da vontade, que esquece que, em Deus, poder é serviço. Assim como Se apresentou em Jesus: «Eu estou no meio de vós como quem serve».

Voltando ainda ao trecho do Papa Francisco, fixemo-nos nos dois últimos pontos, por assim dizer, programáticos: Quando escreve: «Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos, a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria». A expressão «uma nova etapa evangelizadora» retoma a insistência dos sucessivos Papas nos últimos cinquenta anos, que São João Paulo II designava como “nova evangelização”.
Dizia ele que tinha de ser «nova no ardor, nova nos métodos e nova nas expressões». O “ardor” pode traduzir-se com o Papa Francisco em “alegria”, pois disso mesmo se trata. Quem conhece e reconhece a alegria do encontro com Cristo não a contém para si nem a consegue suster, antes a comunica com os olhos que brilham, a boca que canta e as mãos que se estendem para Deus, em louvor, e para os outros, em solidariedade incansável.
É o ardor que encontra depois os melhores métodos e expressões para se comunicar, que não residem tanto em recursos externos, mas sobretudo na criativa vontade de traduzir por palavras e obras a alegria pascal, que só a partilha mantém e acresce. Hoje em dia, apenas a alegria de quem encontrou em Cristo a correspondência viva ao seu desejo mais profundo pode contagiar positivamente um mundo que a extrema necessidade quase encerra em si mesmo, ou a exaustão mediática desmotiva e dilui. Recuperemos aqui o trecho evangélico da Samaritana, que indo à fonte buscar água comum, encontrou em Cristo outra água mais viva, não se contendo depois enquanto não correu a comunicá-lo aos seus conterrâneos. Foi exatamente este trecho que o Sínodo dos Bispos escolheu para a sua mensagem, quando em 2012 versou o tema da “nova evangelização” (cf Jo 4).
Finalmente, o Papa Francisco quer-nos «indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos». Como é sabido, a nossa Igreja de Lisboa está em caminho sinodal até ao fim de 2016, precisamente para refletir, rezar e ensaiar os sucessivos capítulos desta exortação programática. Estou certo de, que quando lá chegarmos, comemorando também o tricentenário da qualificação “patriarcal” que foi dada em alusão ao nosso passado missionário – e implicando certamente a respetiva continuação -, estaremos ainda mais convictos e exercitados na comunicação da “alegria do Evangelho” a uma sociedade que tanto precisa dela e só a poderá e quererá receber por testemunhos credíveis de proximidade e partilha, da parte dos discípulos de Cristo.
Estou certo de que o faremos, tanto mais quanto as notícias que chegam do que vai acontecendo no caminho sinodal de Lisboa são muito estimulantes nesse sentido. Mais de mil grupos a refletir a Exortação Apostólica e a ensaiar ações práticas que concretizem “o sonho missionário de chegar a todos”. Milhares de cristãos envolvidos diretamente neste processo e iniciativas que se vão somando, com criatividade e resultado promissor. Comunidades paroquiais e outras agregações cristãs, seculares, regulares e laicais, sempre em maior número e aplicação… É já a “alegria do Evangelho” em ação. Tudo isto será maior definição evangélica do que somos e mais oferta solidária do que temos: a vida de Cristo para a vida do mundo!

+ Manuel, Cardeal-Patriarca de Lisboa
1ª Catequese Quaresmal, Santa Maria de Belém (Jerónimos), 22 de fevereiro de 2015