Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na Solenidade do Corpo de Deus.
Amados irmãos e irmãs – como muito especialmente o somos nesta solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, que tanto faz de nós um “corpo” só.
Três ordens nos deu o Senhor, no Evangelho que ouvimos: que comamos daquele “pão”, que é o seu corpo, e bebamos do seu cálice de aliança; que lhe preparemos o lugar, onde a ceia continue, como foi então, e sempre se prolongue; e que isto mesmo se expanda, pois visa a inteira “multidão dos homens”.
Que O tomemos como pão, transubstanciado em corpo, é tão surpreendente agora como o foi na altura. Sim, irmãos, surpreendente é e deve ser, pois ultrapassa qualquer previsão e conjetura. – Quem o poderia imaginar e prever? Quem o poderá compreender, partindo unicamente de si próprio?
Também por isso a solenidade de hoje continua a ser importante e oportuna, para nos lembrar a inaudita verdade de um Senhor que connosco quis ficar – e não só na lembrança do que fez, mas sobretudo na substância do que faz e perfaz em cada um que O aceite, como vida da sua vida e alimento da sua fome essencial. Sua e do mundo inteiro.
Significa isto que, tornando-se alimento e pão, o Senhor Jesus faz do pão a sua mesma pessoa, plenamente dado para plenamente ser aceite. É o que traduzem palavras como comunhão e assimilação, e não tanto d’Ele por nós, como de nós todos por Ele, para que se prolongue em tudo e por nós chegue a todos.
Assim foram compreendendo os discípulos de então, como o vamos percebendo nós, os de agora, na verdade eucarística das vidas que se queiram cristãs. Melhor dizendo, da vida de Cristo em nós, pois, comungando-O, nós próprios como que somos “comungados” por Ele, para sermos seu corpo, isto é, sua presença e expressão para os outros.
São Paulo experienciou com tal vivacidade a presença de Cristo em si próprio, que chegou a escrever palavras como estas: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). Daqui decorrendo a maior exigência duma vida cristã e eucarística, tão íntima como exteriormente.
Sim, caríssimos irmãos, a comunhão, muito mais do que um momento devoto e emotivo, é a total receção de Cristo em nós, palavra em sacramento, e a maior adequação da vida de cada um à vida substancial do Cristo, de todos e para todos. A sua palavra ecoará nas nossas palavras, o seu pensamento converterá os nossos, os seus sentimentos também e a sua vontade sempre.
– Compreendemos já que, sendo inteiramente graça, a vida eucarística é sobremaneira exigente, como cada comunhão sacramental?! E não poderia ser menos, pois ouvimos da primeira para a segunda leitura desta Missa o quanto custou a Cristo, que no-la proporciona agora. Dos sacrifícios exteriores que se faziam, passou à devolução inteira da humanidade a Deus, como em si mesmo a transportava: «Não derramou sangue de cabritos e novilhos, mas o seu próprio Sangue, e alcançou-nos uma redenção eterna.»
É também por isso que só muito responsavelmente nos devemos abeirar da comunhão eucarística, conscientes de tudo quanto ela implica, de prática e propósito. Especialmente no que se refere aos laços comunitários, pois quem comunga a Cristo, comunga também com os outros, que são igualmente seu “corpo”. É nesta ordem de ideias que São Paulo adverte os coríntios, como a nós agora: «Examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho» (1 Cor11, 28).
Surpreendamo-nos ainda e sempre com a verdade do que celebramos, “mistério da fé” realmente.
Surpreendamo-nos, para ainda mais correspondermos à graça divina, com as obras que a mesma graça nos induz e faculta.
Obras de comunhão eclesial e obras de caridade ativa, que comprovam e concretizam as comunhões legítimas. Relembremos o que nos diz o Papa Francisco sobre a devoção eucarística, citando aliás São João Paulo II: «Alegra-me imenso que se multipliquem […] as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, há que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação» (Evangelii Gaudium, 262).
Não poderia ser diferentemente. Se a comunhão eucarística acaba por ser, como ouvimos a São Paulo, muito mais a nossa comunhão por Cristo do que a nossa comunhão de Cristo, isso mesmo nos transporta do corpo eucarístico que recebemos ao corpo crístico que nos assimila. E, se “corpo” significa a expressão e comunicação da pessoa, então vamos sendo nós a própria manifestação de Cristo, da Eucaristia para o mundo; e, assim mesmo, a expansão constante da sua entrega pela Igreja e por todos – ou para todos, através da Igreja.
Também por isso, o Apóstolo das Gentes chegou a escrever as seguintes palavras, tão reveladoras como exigentes, que podem ligar a plenitude da Eucaristia e a constância da missão: «Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja. Foi dela que eu me tornei servidor, segundo a missão que Deus me confiou para vosso benefício: levar à plena realização a Palavra de Deus, o mistério escondido ao longo das gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos. Deus quis dar-lhes a conhecer a imensa riqueza da glória deste mistério entre os gentios: Cristo entre vós, a esperança da glória!» (Cl 1, 24-27).
É isto mesmo, que Paulo escreveu, saindo-lhe da alma e da vida, que pretendemos realizar no caminho sinodal de Lisboa e cantamos no repetido refrão: «É o sonho missionário / de chegar a toda a gente. / Longe ou perto, o necessário / É mostrar Cristo presente!». É isto também que faremos logo à tarde quando levarmos o Corpo de Cristo em procissão pelas ruas da cidade. E é isto sobretudo, que faremos todos os dias, concretizando Eucaristia em missão. Pois o seu Corpo foi entregue «pela multidão dos homens».
Assim a propósito da primeira e da terceira das ordens que Jesus nos deu no Evangelho escutado – que O recebêssemos como alimento e que partilhássemos com todos a sua mesma oferta. Da segunda, adianto brevemente algo mais. Era assim o trecho, a propósito da ceia: «Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes: “Ide à cidade. […] Preparai-nos lá o que é preciso”».
Realmente preciso, era apenas Jesus e a entrega de si próprio, que a ceia assinalava. Como continua a ser, pois não fazemos mais do que celebrar a Páscoa, só assim conseguida. Mas continua a contar connosco, para preparar a grande sala do mundo para a Eucaristia que urge. Em cada família, em cada escola, empresa, hospital ou prisão; em cada país e entre quem não o tenha, num mundo tão dilacerado por exclusões e conflitos… Em qualquer lugar e circunstância, Cristo conta irrecusavelmente com todos e cada um de nós, para realizar a comunhão perfeita.
E, se estamos conscientes de muitas vezes não lhe termos preparado a sala de cima, «alcatifada e pronta», redobremo-nos agora em conversão eucarística mais consciente e autêntica. Em boa verdade, a procissão do Corpo de Deus não se limitará a duas horas.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Sé Patriarcal, 7 de junho de 2015