No número 53 do Instrumentum Laboris (II Parte, Capítulo II: Família e vida da Igreja), encontramos um passo fundamental para a compreensão do que deve ser a família, como base e critério da nossa vida comunitária em geral. Aí se diz que a comunidade cristã não pode resumir-se a uma “agência de serviços” e deve tornar-se no lugar onde as famílias nascem sacramentalmente, se encontram e caminham na fé, em entreajuda e partilha.
Como sabemos, a crescente concentração de pessoas em grandes espaços urbanos e a separação dos familiares uns dos outros, para procurarem trabalho ou por outras razões, alterou profundamente o antigo quadro rural e localizado onde a vida geralmente decorria, com grande vinculação familiar. A maioria da população mundial vive já em meio urbano e o movimento crescerá sempre mais, em grandes concentrações, de muitos milhões de habitantes.
Dificilmente se reconstruirão solidariedades como as que tivemos anteriormente, ou as vizinhanças estáveis onde as gerações se sucediam e reconheciam. Também se tornou difícil dar condições materiais e sociais suficientes a todos os que querem constituir famílias e criar filhos, com a dimensão que tinham décadas atrás. Por outro lado, o individualismo cultural hoje prevalecente não motiva compromissos duradouros e fecundos, como os familiares.
Se o número 53 do Instrumentum Laboris nos adverte que a comunidade cristã não se pode resumir a uma “agência de serviços”, é porque muitas vezes trazemos para dentro da própria Igreja as práticas habituais da “sociedade de consumo”, em que o intercâmbio se faz mais de coisas do que propriamente de relações pessoais autênticas. São recorrentes as queixas de quem não é verdadeiramente acolhido nem atendido, mesmo quando contacta as instituições da Igreja. Nem sempre podemos corresponder ao que nos é pedido, mas nunca podemos desprezar quem nos pede alguma coisa.
Este passo do Instrumentum Laboris diz-nos ainda mais. Diz-nos que a formação e acompanhamento das famílias cristãs, assim como a partilha crente e existencial que estas mesmas façam entre si, devem caraterizar a comunidade cristã no seu todo.
Enunciado doutro modo, podemos concluir que a renovação das comunidades, no presente contexto sociocultural, se há de fazer com critério familiar, tonando-as efetivamente “famílias de famílias”.
Sabemos que isto mesmo vai acontecendo, quando a preparação para o matrimónio começa cedo, na família e na catequese da infância e da adolescência, com o envolvimento direto dos pais, bem como nos grupos juvenis orientados por casais jovens; quando as famílias são espiritualmente acompanhadas na comunidade e em grupos de casais; quando os serviços comunitários de cada um têm em conta os seus laços familiares; quando famílias inteiras praticam voluntariado ou missões temporárias e a comunidade as acompanha na oração e na partilha de notícias.
Neste caminho devemos prosseguir, rumo à «conversão pastoral e missionária» das comunidades, que o Papa Francisco apresentou como programa para toda a Igreja (cf. Evangelii Gaudium, 25). Por seu lado, as comunidades cristãs, renovadas com critério familiar, devem ser “proféticas” para uma sociedade que se renovará também assim, valorizando a respetiva base familiar e inter-familiar. Incorporando certamente as possibilidades tecnológicas e mediáticas hoje disponíveis, mas não se deixando desvirtuar por elas.
Retomaremos a verdade cristã das origens, como o Novo Testamento nos revela. De Belém ao Egito e do Egito a Nazaré, os primeiros trinta anos da vida de Jesus acontecem em contexto familiar, com as vicissitudes de tantas outras famílias de qualquer tempo e lugar. Quando sai de Nazaré, não constitui uma família de sangue, mas sublima e alarga a todos os sentimentos familiares que vivera como filho e parente: para constituir a família dos filhos de Deus que, por isso mesmo, são universalmente irmãos.
Na primeira evangelização, os Atos dos Apóstolos referem muitas vezes a importância de casais e famílias na vida da Igreja, como é o caso de Áquila e Priscila, em Corinto e Éfeso, ou daqueles que Paulo lembra nas saudações das suas cartas. E também na transmissão da fé, o mesmo Paulo não se esquece de lembrar a Timóteo o papel que tinham tido a sua mãe e a sua avó.
Face aos grandes desafios que hoje enfrentamos, em termos de sociedade e evangelização, importa encontrar a base firme para a resposta cristã. Encontramo-la na família e devemos oferecê-la no testemunho fecundo das famílias cristãs.
Roma, Sínodo dos Bispos, outubro de 2015
+ Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa