Irmãos e amigos, e especialmente vós, caríssimos membros do nosso Sínodo diocesano, assim inaugurado:
Ficou-nos certamente no ouvido o que acabou de ressoar no Evangelho: «Nos dias que precederam o dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca e não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou».
Contraste fortíssimo, este, entre o que continua e o que descontinua, entre o habitual e a desabituação forçada, hoje ou amanhã, para nós e para os outros. Neste como noutros trechos, Jesus alerta para a realidade das coisas, tais como são ou podem ser, sem alienação nem olvido.
Que as coisas acabam e o habitual é frágil e perecível todos o sabemos, ou já devíamos saber. Por isso mesmo sofremos, nós e os outros, antes, durante e depois de acontecerem. Adoecem e falecem pessoas do nosso horizonte próximo, chegam-nos notícias funestas de mais perto ou mais longe, prevemo-las ou tememo-las… Tudo mediaticamente potenciado, como num único espaço, sem aqui nem ali, mais ameaçador por isso. Nações em guerra, cristãos perseguidos e mortos, muita gente em fuga, desastres naturais com trágicas consequências, físicas, anímicas e até mentais.
Catadupas destas podem paralisar-nos, entre o espanto e o medo. Mas não foi assim, ao menos agora, pois respondemos com um diálogo maximamente positivo: «Palavra da salvação! Glória a Vós Senhor!» Agradecemos o aviso, primeiro passo da cura.
Na verdade, o que Jesus nos avivou não foi apenas, nem sobretudo, a consciência da precariedade das coisas; foi a certeza, essa sim, da sua presença forte, em iminente chegada: «Estai vós também preparados, porque na hora em que menos pensais, virá o Filho do homem». Cristão que se queira, só vive e pode viver dum encontro e para um encontro, seja em que circunstância seja e através de quem for e do que for…
A Páscoa de Cristo é sempre o essencial da nossa liturgia, mesmo no Advento. Porque é dela que partimos, como fim por Ele atingido e por Ele oferecido agora, em cada circunstância pessoal, familiar, social e eclesial. Como será aclamado daqui a pouco – como aliás sempre acontece, seja Advento ou Quaresma, seja Natal ou Páscoa: «Anunciamos Senhor a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!».
Ou com formas semelhantes, que podemos repetir depois na oração pessoal, por serem tão essencialmente cristãs e plenamente salvíficas: «Quando comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, esperando a vossa vinda gloriosa!» E também: «Glória a Vós que morrestes na Cruz e agora viveis para sempre. Salvador do mundo, salvai-nos. Vinde, Senhor Jesus!»
Deixai-me insistir neste ponto, pois creio que a liberdade cristã brota precisamente daqui. Não tem medo do que possa vir quem vive d’Aquele que constantemente advém. Cuida do que deve cuidar, seu e dos outros, o melhor que pode e sabe, com toda a responsabilidade e correção. Segue o que disse São Paulo e também ouvimos, «andando dignamente, como em pleno dia». Mas permanece interiormente seguro n’Aquele que assim viveu, morreu e ressuscitou. Fica pacificado e torna-se pacificador. Venha o que vier, aí mesmo divisará a Cristo e O reencontrará por fim. Jesus Cristo é a garantia divina da nossa humanidade frágil, que assumiu e salvou.
(Há tempos ouvia um colega bispo duma nação rica a queixar-se do que já não tinha: menos praticantes, menos apoio económico, menos isto, menos aquilo… Ao que respondeu outro, bispo duma minoria cristã e perseguida do Próximo Oriente, contrapondo que, faltando-lhe tudo, mesmo a certeza de chegar vivo ao fim de cada dia, permanecia em paz por permanecer em Cristo, ele e os fiéis que sobravam. Pressentiam bem o seu Advento… Agradeceu-lhe certamente o queixoso e agradecemos-lhe todos os que ali estávamos.)
Mas não nos basta dizê-lo, é preciso condizê-lo. Como batizados e confirmados no Espírito de Cristo, somos seu corpo e Advento no mundo. Acolhamos e acorramos a toda a realidade em redor, dramática sempre e muitas vezes trágica. Sim, a profecia que ouvimos a Isaías pode não ser utópica e deve mesmo ser apressada. Manifesta a vontade divina de recriar o mundo, como começou a acontecer em Cristo. Em Cristo que se alarga nos cristãos, para que inteiramente suceda. Sonhemos com Deus, trabalhemos com Cristo, no impulso do seu Espírito: «Converterão – converteremos! – as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão de preparar para a guerra». Entre tantos medos e agoiros sobre o nosso grande ou pequeno mundo, vamos por diante no sentido da justiça e da paz, porque há de facto um Advento a perfazer agora.
Aqui estamos, pois, em Advento retomado e acrescentado. Na chegada de Cristo onde a vida acontece, onde a vida nos toca, onde o mundo dói. Vislumbramo-la, sabemo-la, por nós e para todos.
Por isso também, entramos em Sínodo, momento forte dum caminho que começámos em 2014 e que nos levará mais à frente, com reforço de ânimo e sentido. Impeliu-nos o Papa Francisco, com o seu e nosso “sonho missionário de chegar a todos”. Outra maneira de dizer Advento de Cristo em nós para que, também por nós, se aproxime de cada um, em todo o local e situação que for e haja de ser, urgentemente ser.
– E qual a prioridade, a intencionalidade, do olhar e do fazer? Creio que, na esteira do Jubileu há pouco concluído, todos estamos cientes e certos de que só pode ser a misericórdia. Como nos dois últimos programas diocesanos, entre “a missão como propósito e a sinodalidade como método” e “a família como critério e a misericórdia como alma”. Porque existimos para fora de nós, somos um corpo que só em conjunto atua e prossegue, crescemos da família doméstica para a família de Deus e tudo isto acontece misericordiosamente, ou seja, priorizando os últimos, que hão de ser primeiros.
Isto mesmo nos lembra o primeiro Advento de Cristo, tão paradoxal para os critérios mundanos. Não veio ao nosso encontro no centro do império de então, como seria em Roma; nem na sábia Atenas, nem sequer em Jerusalém. E nasceu num estábulo, sem lugar em casa. Levaram-no de seguida, refugiado, emigrante e exilado. Passou a maior parte da sua vida terrena em Nazaré da Galileia, lugar desconceituado pelos da capital. E foi no trono da cruz, o lugar dos últimos dos últimos, que nos começou a atrair a todos, como estamos hoje, como estaremos sempre. Começar pelas periferias, priorizar os últimos, para acolher, integrar, incluir – este é indubitavelmente o critério de Deus. E assim há de ser o nosso, ativando o seu Advento de agora.
Na carta apostólica Misericordia et misera, com que o Papa Francisco prossegue o Jubileu, tal desiderato é formulado assim: «Agora, concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina. As nossas comunidades serão capazes de permanecer vivas e dinâmicas na obra da nova evangelização na medida em que a “conversão pastoral”, que estamos chamados a viver, for plasmada dia após dia pela força renovadora da misericórdia. Não limitemos a sua ação; não entristeçamos o Espírito que indica sempre novas sendas a percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação» MM, 5).
No documento que vos será entregue para preparação imediata da nossa assembleia, caríssimos membros do Sínodo diocesano, estão recolhidas e sistematizadas as muitas sugestões recebidas de há dois anos a esta parte e também as ultimamente feitas sobre a sua primeira redação. Com tudo isto se habilitará o bispo diocesano para assinar por todos a constituição sinodal de Lisboa, formulação genérica do que depois se deverá concretizar, comunidade a comunidade, conforme as respetivas condições específicas. E a chave maior de entendimento e ação só poderá ser a da misericórdia, sinal autêntico do Advento de Cristo, a nós como dom e através de nós como missão. Assim nos guiará a Mãe de Misericórdia, na qual e pela qual tudo começou a acontecer, para que o amor de Deus incarnasse no mundo.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Sé de Lisboa, 27 de novembro de 2016, primeiro Domingo do Advento, início do Sínodo diocesano